José Claudio Pereira
CRC/RS 46.949
joseclaudio@dataconcontabilidade.cnt.br
Eonara do Carmo Cesa Paim
CRC/RS 56.102
narapaim@dataconcontabilidade.cnt.br
O patrão de si mesmo
O trabalhador se transforma no empregador de si mesmo e esta é a razão intrínseca do desprestígio dos movimentos sindicais em todo o mundo.
A luta de classes entre patrões e empregados se transferiu para o íntimo de cada trabalhador. Não mais se dá por meio da mediação, da negociação e do dissídio dos sindicatos. Esta é a razão intrínseca do desprestígio dos movimentos sindicais em todo o mundo.
A nova realidade cotidiana do universo das organizações transforma o trabalhador numa espécie de empregador de si mesmo. O profissional emprega o corpo e entrega a alma ao trabalho.
É cada vez mais presente que a histórica luta de classes entre capital e trabalho, tão bem descrita por Marx, transfere-se hoje para o interior do indivíduo como pessoa.
A série de suicídios que ocorrem nas mais diversas corporações em todo o mundo é uma das mais deletérias consequências da forma de organização do trabalho produzida para atender às novas necessidades da sociedade de mercado, que muitos no mundo globalizado denominam de neoliberal.
O fordismo já não rege a organização do trabalho... Muito menos as descobertas das ciências do comportamento humano
Os princípios da Administração Científica tão bem sustentados originalmente por Ford, Taylor, Fayol, Gulick e muitos outros já não mais parametrizam a organização do trabalho e a gestão das organizações. Nem o fazem os postulados da Pesquisa de Hawthorne, marco determinante da Escola de Recursos Humanos e dos avanços daí decorrentes que redundaram no desenvolvimento das ciências do comportamento humano no trabalho.
Durante todo esse tempo, ou seja, até o segundo terço do século XX, os sindicatos se batiam preponderantemente para reduzir as jornadas de trabalho, para aumentar os salários e para conquistar novos benefícios e vantagens extra-salariais; e, em menor escala, tentavam controlar as condições de trabalho pela via das negociações e dos dissídios coletivos. Mas, de forma alguma, atuavam diretamente nos processos e procedimentos que se passavam por dentro do próprio trabalho, na natureza ou na essência do trabalho em si mesmo.
Este foi o sistema produtivo que permitiu grandes avanços da humanidade ao longo do século passado, o florescimento da sociedade de consumo, o desenvolvimento econômico das nações e a melhoria substantiva da qualidade de vida de parcelas expressivas da população mundial. Contribuiu também, claro, para aprofundar e para explicitar as desigualdades e disparidades socioeconômicas existentes entre nações, dentro das próprias sociedades e entre os indivíduos.
De forma alguma, no entanto, as ações de representação sindical tratavam do percurso existencial dos trabalhadores como pessoas e por onde se oxigenavam e se renovavam como seres humanos. Bem, pelo menos até os primeiros resultados das investigações científicas da Fábrica de Hawthorne, da Western Electric, e dos avanços posteriores das ciências do comportamento humano nas organizações, como já acima destacado..
Os trabalhadores respiravam o ar puro da renovação humana fora do trabalho...
Os trabalhadores se dedicavam exaustivamente a seus trabalhos, em duras jornadas laborais, mas se oxigenavam fora dele, ou melhor, respiravam a renovação e a restauração humana fora das organizações em que trabalhavam, bem distantes do que realizavam no cotidiano em suas estafantes jornadas laborais.
Respiravam o ar puro da renovação existencial pela participação intensa em instâncias externas ao trabalho, como associações comunitárias diversas, ativa vida social e religiosa, e, principalmente, a própria família.
Essas eram as suas válvulas de escape de oxigenação. Através do salário e do emprego podiam ascender ao mundo, participar da vida social de suas comunidades, garantir qualidade de vida às suas famílias, integrar-se em plenitude ao universo civilizatório da sociedade em que viviam.
Eram objeto e sujeito de amor e de trocas afetivas, de relações e de ambientes sociais, de participação e de pertencimento.
O trabalho era, de fato, o divino castigo que deveriam cumprir ou o preço a ser pago para desfrutar de uma vida em plenitude fora dele.
Agora, já não mais respiram e se oxigenam existencialmente como faziam antes. As exigências crescentes das novas formas de organização da sociedade de mercado seqüestram as alternativas de dedicação a outras formas distintas de convivência humana, na família e nas associações formais ou informais da comunidade nas quais antes integravam e participavam ativamente.
Os suicídios e a s seqüelas psicológicas dos trabalhadores no universo da sociedade e no mundo das organizações são o grito de desespero dos que sucumbem pela impossibilidade de restauração humana.
É um desvio equivocado de percepção atribuir simplesmente a razões individuais isoladas a incidência recrudescente de casos de suicídios e de síndromes de burn out ocorrentes no mundo do trabalho em geral.
São o grito de revolta ante uma situação que ultrapassa os limites do equacionamento individual para se transformar numa epidemia social.
O suicídio e as doenças laborais psicológicas abrem uma fresta para o trabalhador respirar, mudando a sua realidade de um ambiente contaminado irrespirável.
O que se suicida nos convoca para ver o que é visível, mas não é visto: a nova organização do trabalho não está consciente de que produz mortos-vivos, verdadeiros zumbis fanatizados pelo trabalho, trabalhadores devotos à organizações, agora transformadas em seitas de adoração.
Apesar do discurso da imprescindibilidade e da importância da equipe na obtenção da excelência de resultados, nunca se praticou tanto a avaliação individual.
A exacerbação do cumprimento de metas individuais de desempenho agrava e aprofunda a dissensão entre colegas, viola o princípio da solidariedade e da cooperação subjacente no trabalho, devasta ambientes sociais, exacerba o egoísmo e a competitividade predatória de um contra um, de um contra alguns, de um contra todos e de todos contra todos.
A nova organização do trabalho produz a fratura existencial do colaborador...
A avaliação individualizada produz uma divisão no interior da pessoa, entre a necessidade de cumprimento individualizado de metas e as necessidades de apoio, de solidariedade e de cooperação inerentes à natureza humana próprias de pessoas envolvidas na realização de tarefas comuns.
O trabalhador termina por se transformar numa espécie de empregador de si mesmo, um empreendedor interno da organização, como de forma eufemística as diretrizes ditas modernas de gestão de pessoas manipulativamente gostam de chamá-los.
Se antes já se dizia que os trabalhadores já não tinham razão para se sentirem em contradição com a organização, porque os interesses poderiam ser compatibilizados ou administrados pela aplicação das boas teorias gerenciais, agora o assalariado se transforma em seu próprio patrão, no empregador de si mesmo. É a resposta incisiva da sociedade de mercado ao problema da luta de classes, sempre presente entre capital e trabalho, entre salário e lucro, entre as necessidades do empregador e do empregado.
Se os trabalhadores já não tinham mais razão para se sentirem em contradição com o capital, como doutrinavam as teorias das organizações, agora fazem do assalariado o seu próprio patrão, o empregador de si mesmo, o empreendedor interno do negócio em que trabalha. Já não há mais luta de classe, os interesses intrínsecos de ambas as partes se concentram indiviso no íntimo de cada trabalhador como pessoa. Eis ai um sofisma de falsa causa. Em verdade, tanto o capital, agora travestido massivamente de capital financeiro, quanto o trabalho continuam plenamente presentes. Apenas agora o conflito entre salário e lucro, entre capital e trabalho, transbordou para um antagonismo social a ser equacionado e resolvido no interior do próprio indivíduo.
Antes, o conflito social estava regulado pelas mediações sindicais entre patrões e empregados, por normas e regulamentos legais de governo, pela ação direta do Estado, principalmente pelas decisões dos tribunais de justiça. É evidente que estas condicionantes institucionais ainda subsistem, mas não mais como protagonistas exclusivos da resolução de querelas entre patrões e empregados.
Agora o conflito se encontra intensamente dentro do trabalhador como pessoa. E é exatamente a incapacidade de as pessoas administrarem esse conflito interior que tem no suicídio e nas seqüelas psicológicas do trabalho a sua válvula de escape, a solução dramática de um impasse inusitado que não vislumbra alternativas de equacionamento ganha/ganha se mantido o quadro de circunstancias da ideologia dominante de organização do trabalho prevalecente nos tempos presentes na sociedade de mercado.